Magistrados questionam constitucionalidade de diversos pontos, provocando ambiente de insegurança jurídica e apresentando riscos para os empregadores
Em vigor no país desde novembro de 2017, o novo regime trabalhista foi projetado com o objetivo de diminuir a burocracia e tornar mais maleáveis as relações de trabalho entre empresa e colaborador, a partir da flexibilização de normas sem a perda de direitos.
Dezoito meses após o início de sua vigência, no entanto, o regime ainda tem diversas de suas regras questionadas pela comunidade do direito do trabalho – o que tem causado um ambiente de grande insegurança jurídica para empresas que têm o desejo de adotar algumas das novas prerrogativas abertas pela chamada ‘Reforma Trabalhista’.
A complexidade das relações laborais no Brasil foi, aliás, constantemente abordada por empresários e líderes sindicais entrevistados na matéria de capa do Novo Varejo em sua edição de março, na qual abordamos o alto grau de burocracia de nosso país e suas consequências para o empresariado.
Visando elucidar essa questão-chave para a competitividade das empresas brasileiras de todos os portes e segmentos, entrevistamos as duas pontas dessa queda de braço que cerca a implementação real das novas regras trabalhistas do país: um advogado do trabalho, acostumado a interpretar as leis na frieza de suas letras; e um sociólogo, habituado a contextualizar as leis em um contexto menos exato, relacionando-as e balizando-as com os direitos sociais e cidadãos.
Para representar a classe dos advogados, conversamos com o especialista em direito do trabalho e coordenador jurídico da Karpat Advogados, Guilherme Lemos, a respeito das principais mudanças trazidas pelo novo regime e quais delas já “pegaram” na prática brasileira.
Já na exploração do campo sociológico, batemos um papo com o supervisor dos Sistemas de Acompanhamento de Informações Sindicais do DIEESE, Luis Ribeiro, sobre as questões sociológicas e constitucionais que pautam a multiplicidade de interpretações das novas regras trabalhistas e que as tornam um tanto quanto ‘inseguras’ para os empresários locais.
Novo Varejo – O excesso de burocracia das relações trabalhistas brasileiras é uma queixa constante do empresariado há anos. Tivemos, no entanto, em novembro de 2017, uma reforma que alterou diversos mecanismos do antigo regime. Quais foram as principais mudanças implementadas pela reforma?
Guilherme Lemos, coordenador jurídico da Karpat Advogados – A intenção do legislador com a Reforma Trabalhista foi flexibilizar as relações de emprego, em que o empresário e o empregado podem fazer acordos individuais sem a intervenção dos sindicatos; assim, os acordos individuais passaram a ganhar mais força. A principal mudança foi em relação à terceirização da mão de obra. Com a nova lei, passou a ser permitida a terceirização de todas as atividades da empresa; antes, só era permitida a terceirização da atividade meio, que é aquela que não está ligada ao objetivo final da empresa. O Supremo Tribunal também declarou constitucional o emprego de terceirizados nas atividades-fim das empresas. Outras alterações importantes foram:
– O fracionamento das férias, que podem ser usufruídas em até três períodos, sendo que um deles não pode ser inferior a 14 dias e o outro inferior a cinco dias.
– A extinção do contrato de trabalho em comum acordo, sendo devidas pela metade o aviso prévio e a indenização sobre o saldo do FGTS; as demais verbas devem ser pagas na integralidade.
– O fim da necessidade de homologação pelo sindicato da dispensa do empregado; a rescisão pode ser feita na própria empresa.
– A empresa que mantiver empregado não registrado ficará sujeita à multa no valor de R$ 3.000,00 por empregado não registrado, acrescido de igual valor em cada reincidência.
– A contribuição sindical só pode ser descontada mediante autorização expressa e voluntária do funcionário e, com a Medida Provisória 873/19, o recolhimento da contribuição sindical deve ser feito através de boleto bancário e não pode mais haver desconto em folha de pagamento.
NV – Durante o Fórum Lide de Varejo 2019 ocorrido em 23 de março no Guarujá (SP), diversos empresários se queixaram do fato de o novo regime ainda não ter “pegado” no país. Isso pode ser atribuído ao desconhecimento do empresariado em geral sobre as novas regras ou à insegurança jurídica que ainda cerca alguns de seus pontos?
GL – Entendo que se deve à insegurança jurídica, hoje ainda são poucas as decisões dos tribunais acerca da reforma trabalhista, bem como tramitam ações de declaração de inconstitucionalidade no Supremo Tribunal Federal referentes ao trabalho intermitente, à atualização dos depósitos recursais, à fixação de valores de indenização por dano moral, à realização de atividades insalubres por gestantes e lactantes, à cobrança de honorários advocatícios e pericias em caso de sucumbência e à cobrança de custas judiciais aos empregados que derem causa ao arquivamento de suas ações por não comparecimento injustificado à audiência. Então, acredito que o fato de a reforma não ter “pegado” no país se dá pela incerteza dos julgamentos.
NV – Dentre todos os pontos do Regime Trabalhista, quais “pegaram” – no sentido de serem implementados na prática?
GL – Um ponto que está em alta é o acordo extrajudicial com base nos artigos 855-B e 855 -E da CLT: o empresário e o funcionário, através de seus advogados, podem fazer o acordo fora do juízo e apresentar uma petição para homologação em uma vara do trabalho. Esse tipo de acordo vem crescendo cada vez mais nos tribunais em razão das partes já terem se conciliado antes de uma ação judicial e, consequentemente, terem os seus direitos satisfeitos com mais rapidez.
NV – Embora tenha entrado em vigor em novembro de 2017, a Reforma Trabalhista ainda oferece o que pessoas da área de direito chamam de ‘insegurança jurídica’ em alguns dos seus pontos. Houve precipitação e falta de uma articulação mais apropriada com os magistrados da área trabalhista e os detalhes da Constituição Federal?
Luís Ribeiro, supervisor do DIEESE – É certo que a Reforma Trabalhista foi implementada de forma açodada e sem ampla discussão com a sociedade. Incluo nessa consideração os magistrados do trabalho. Eles também não foram ouvidos de forma adequada ao longo do processo legislativo. Segundo levantamentos feitos por nós no DIEESE, a reforma de 2017 alterou mais de 100 artigos da CLT, afetando ampla e profundamente a legislação trabalhista e sindical no Brasil. Sem dúvida, foi a maior reforma do sistema de relações do trabalho no país desde a promulgação da CLT, em 1943. Só por essa razão, não seria aconselhável realizar a reforma sem um grande debate a respeito. Para enfatizar o argumento, é preciso lembrar que menos de sete meses transcorreram entre o encaminhamento do projeto de lei à Câmara, no final de 2016, e a sua promulgação, no início de julho de 2017. A construção social que foi a nossa legislação trabalhista, um trabalho de mais de 70 anos como envolvimento do Estado, trabalhadores e empresas – entre avanços e recuos, consensos e dissensos – foi posta de pernas pro ar da noite para o dia. Mudanças estruturais foram realizadas na Justiça e no Direito do Trabalho, entre outras esferas. É natural, portanto, que exista insegurança jurídica. Não sou um especialista do Direito, mas sei que a aplicação das leis não se reduz a uma leitura fria de códigos estabelecidos. Há uma margem interpretativa, que é orientada tanto no plano da doutrina do Direito, como no mundo prático da vida. Desta forma, acredito que serão necessários muitos anos até que um novo consenso se estabeleça no campo do Direito e da sociedade.
NV – Qual seu entendimento sobre o trabalho intermitente, que na nova modalidade contratual permite que o empregado seja convocado para trabalhar esporadicamente, com até três dias de antecedência, com previsão de multa de 50% do valor que o empregado iria receber em caso de falta, e dá ao empregador o direito de pagá-lo apenas o salário das horas trabalhadas, desconsiderando o período em que ele aguarda em ‘stand by’? Em sua interpretação, essa prerrogativa viola o artigo 7º da Constituição Federal, que garante a todo trabalhador o recebimento de pelo menos um salário mínimo, fixado por lei e unificado nacionalmente?
LR – O trabalho intermitente oferece inúmeros riscos aos trabalhadores, tal como a insegurança econômica. É sabido que o trabalhador sob esse regime de contratação pode receber, ao final do mês, um valor inferior ao salário mínimo mensal, ainda que, em termos de salário hora, seu valor possa ser igual ao salário mínimo hora. Isso suscitou o questionamento da constitucionalidade do contrato intermitente por diversas entidades sindicais. Segundo levantamento realizado em maio de 2018, existiam quatro Ações Diretas de Inconstitucionalidade sobre o tema no STF (ADIs 5806, 5826, 5829 e 5950). Em linhas gerais, as ADIs acusam o descumprimento dos direitos referentes ao salário mínimo, presentes no artigo 7º da Constituição. A ADI 5950, em particular, ajuizada pelo Confederação Nacional dos Trabalhadores no Comércio (CNTC), incorpora à denúncia o descumprimento dos incisos III dos artigos 1º e 5º da Constituição, sobre a dignidade da pessoa humana. Segundo a ADI 5950, a regulação do trabalho intermitente reduz a noção de trabalho humano a um mero fator de produção e fere a finalidade constitucional da melhoria da condição social do trabalhador por precarizar as relações de trabalho. Como disse, não sou especialista da área de Direito e, portanto, não me arriscaria a fazer previsões sobre o resultado das ADIs no STF. Do meu ponto de vista sociológico, interessa-me mais a forma como vão sendo construídos os consensos na sociedade. Nesse sentido, é importante destacar a decisão tomada em segunda instância pelo Tribunal Regional do Trabalho de Minas Gerais, que considerou nulo um contrato intermitente de trabalho realizado pelo Magazine Luiza. No entender do tribunal, a função a ser desempenhada pelo trabalhador em regime intermitente não tinha um caráter excepcional e, por essa razão, não poderia ser contratado em regime de trabalho intermitente. Segundo a sentença proferida, “entende-se o contrato de trabalho intermitente como sendo uma contratação excepcional, em atividade empresarial descontínua. Assim sendo, essa modalidade de contrato, por ser atípica e peculiar (…) [deve ser] ser utilizada somente para situações específicas”. Não sabemos se esse entendimento prevalecerá no futuro, mas trata-se de decisão relevante. Segundo a agenda do STF, o julgamento da ADI 5826 está previsto para junho deste ano.
NV – Que riscos uma empresa que decidir adotar essa prática do trabalho intermitente pode estar correndo em razão dessas diferenças interpretativas?
LR – No caso do Magazine Luiza, julgado pelo TRT-MG, a empresa foi condenada a pagar as diferenças salariais e verbas rescisórias do trabalhador em regime intermitente como se o mesmo fosse contratado em regime de tempo integral. Esse é um exemplo concreto. Sugiro acompanhar outros casos na Justiça.
NV – Você vê essa situação de insegurança jurídica se resolvendo em um futuro próximo? Até lá, que postura os contratantes devem tomar diante de temas cuja interpretação judicial é incerta?
LR – Levará tempo até que um entendimento sobre a nova legislação do trabalho seja estabelecido. Há quem acredite que este processo levará anos, o que parece ser um caminho natural das mudanças que afetam estruturalmente legislações correntes. Os consensos serão construídos primeiramente na base, em que a letra fria da lei será aplicada e enriquecida pelas experiências concretas da vida. Após esse primeiro momento, começarão a surgir entendimentos maiores, que servirão de baliza para casos gerais. Enquanto isso, é preciso cautela na aplicação da legislação, com atenção ao entendimento dos órgãos judiciais e, principalmente, construindo consensos com as entidades sindicais representativas dos trabalhadores.
Fonte: Novo Arejo