Decisões referem-se a financiamentos em que a garantia é o próprio bem
O Superior Tribunal de Justiça (STJ) tem liberado bancos e incorporadoras de ressarcir compradores inadimplentes de imóveis retomados e não arrematados em leilão. Eles buscavam a diferença entre a dívida e o valor de avaliação do bem. As decisões referem-se a contratos de alienação fiduciária, em que a garantia é o próprio bem.
Ainda há poucas decisões sobre o tema, mas a tendência é que, em razão da crise, aumente o número de discussões, avalia o advogado da área imobiliária Carlos Alberto Canfora Filho, do Neves, De Rosso e Fonseca Advogados.
Hoje, a maioria dos imóveis no país é financiada por meio de alienação fiduciária. Esses empréstimos somaram R$ 92,5 bilhões no acumulado de agosto de 2019 a julho de 2020, segundo a Associação Brasileira das Entidades de Crédito Imobiliário e Poupança (Abecip).
Bancos e incorporadoras alegam nos processos que a dívida deve ser extinta se o imóvel não for arrematado em leilão, sem devolução de diferença em caso de avaliação superior. Deveria ser aplicado por analogia, segundo eles, o que diz o parágrafo 5º do artigo 27 da Lei nº 9.514, de 1997, que dispõe sobre o Sistema de Financiamento Imobiliário. Pelo dispositivo, no segundo leilão, se o maior lance oferecido não for igual ou superior ao valor da dívida, ela será extinta.
Já os devedores entendem que devem ser ressarcidos em relação à diferença e que não seria admissível a perda de todo ou de parte significativa do valor pago na aquisição de um imóvel.
Para o advogado Luís Fernando Teixeira de Andrade, da Karpat Sociedade de Advogados, nesses casos há um claro enriquecimento ilícito dos bancos, proibido pelo artigo 884 do Código Civil, em detrimento do comprador, que não tem a devolução nem dos valores pagos e nem da diferença de avaliação.
Ainda que a maioria das decisões atuais seja favorável aos bancos e incorporadoras, acrescenta, não existe posicionamento consolidado sobre o assunto. “É uma situação extremamente prejudicial ao comprador que não conseguiu pagar as prestações do seu imóvel.”
Em decisão monocrática de agosto, o ministro Moura Ribeiro, do STJ, aceitou recurso de uma empresa de empreendimento imobiliário. O devedor entrou com ação de rescisão contratual e pedido de ressarcimento sobre a diferença entre o valor de avaliação e o valor da dívida. Em junho de 2008, a dívida era de R$ 394 mil e o imóvel foi avaliado em R$ 427 mil, em agosto do mesmo ano.
O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) havia dado razão ao devedor. Para os desembargadores, seria o caso de aplicar, por analogia, o parágrafo 4º do artigo 27 da Lei nº 9.514, de 1997. A norma prevê que quando há venda do imóvel, o credor deve devolver o valor a mais, arrecadado no leilão, que superou a dívida.
Porém, o ministro Moura Ribeiro entendeu que esse posicionamento não deveria prevalecer porque estaria em descompasso com a jurisprudência do STJ. Pelo entendimento, frustrado o segundo leilão do imóvel, a dívida é compulsoriamente extinta e as partes contratantes são exoneradas das suas obrigações, ficando o bem com o credor fiduciário (REsp1861293).
Em outro caso julgado pela 3ª Turma, o entendimento foi favorável a um banco (REsp 1357379). O comprador tinha firmado um contrato de alienação fiduciária, no valor de R$ 176 mil, em 2011, mas, por dificuldades financeiras, tornou-se inadimplente. Após dois leilões negativos, o imóvel teve sua propriedade consolidada a favor do banco e foi avaliado em R$ 196 mil. O que restaria, segundo o contratante um saldo de R$ 35 mil.
Ao analisar o caso, o ministro Marco Aurélio Bellizze, reformou decisão do TJ-SP que dava a diferença ao devedor. Para ele, deve se interpretar que, “frustrados os dois leilões realizados pela instituição financeira, ocorre a extinção da dívida, consolidando-se a propriedade do imóvel na pessoa do fiduciário, inclusive com a desobrigação deste em restituir ao devedor qualquer importância outrora paga”.
Nesse mesmo sentido, existem pelo menos mais duas decisões da 3ª Turma (REsp 1654112 e REsp 14012 33) e também precedente de 2012 da 4ª Turma (REsp 1328.656).
Desde 2015, segundo o advogado Carlos Alberto Canfora Filho, o STJ vem construindo esse entendimento de que não caberia ressarcimento ao devedor de contrato de alienação fiduciária. Apesar disso, afirma, os Tribunais de Justiça, entre eles o de São Paulo, têm sido resistentes a essa interpretação.
Especialista na área, Alberto Mattos de Souza, do PMMF Advogados, afirma que as decisões do STJ estão corretas, ao observar o que diz o parágrafo 5º do artigo 27 da Lei nº 9.514, de 1997. Para ele, a redação atual da norma é clara, objetiva e equilibrada na grande maioria dos casos. Contudo, destaca, pode gerar insegurança jurídica, o que pode ocorrer para os dois lados, credor e devedor.
Ele dá o exemplo de um devedor que tenha pago 90% da dívida e que, ainda assim, ficará sem o imóvel. “Por outro lado, pode ocorrer com um devedor que quitou apenas 10% da dívida. O credor, cujo negócio é dinheiro e não imóvel, recebeu apenas 10% dos recursos esperados e terá que administrar um imóvel que não foi vendido em dois leilões, indicando valer menos do que antes, além de não ter, comprovadamente, liquidez”, diz Souza.
Luís Rodrigo Almeida, sócio do Dib Almeida Laguna Manssur, afirma que o ideal nesses casos seria que o banco prosseguisse com novos leilões, mesmo com valores mais baixos, uma vez que seu negócio não é o imóvel e, se houver um leilão positivo, a norma é clara em devolver a diferença.
Apesar da crise gerada pela pandemia, as instituições financeiras e incoporadoras têm sido mais flexíveis nesse período, segundo o advogado que assessora pessoas físicas nesses empréstimos, Luís Fernando Teixeira de Andrade. “Neste momento não há a determinação de retomada de imóvel de inadimplente. As incorporadoras têm dado um maior prazo para o pagamento das parcelas ou postergado as prestações para o fim do contrato”, diz.
Fonte: Valor Econômico